Uma visão ampliada da vida

Em carta direcionada ao Papa Francisco, durante a jornada Mundial da Juventude, que passou pelo Brasil em julho de 2013, o dominicano Frei Betto, de forma poética e acima de tudo cristã, profetiza e revela a consciência embutida na vontade de cada um de nós:

Os jovens esperam da Igreja uma comunidade alegre, despojada, sem luxos e ostentações, capaz de refletir a face do Jovem de Nazaré, e na qual o amor encontre sempre a sua morada.

Este não é apenas um pedido. É antes de qualquer coisa, o clamor que todo ser humano – embora não demonstre –, deseja para suas vidas.

O conceito de vida aqui defendido pressupõe a visão de “interdependência e interligação entre todos os seres” estabelecida na Carta da Terra[1]. Entende o conjunto da obra: Terra, ser vivo e humanidade.

Leonado Boff é um daqueles brasileiros que difundem o conceito de vida amplo, não limitado apenas aos seres humanos. Ele sugere que

O bem-estar não pode ser apenas social, mas tem de ser também sociocósmico. Ele tem que atender aos demais seres da natureza, como as águas, as plantas, os animais, os micro organismo, pois todos juntos constituem a comunidade planetária, na qual estamos  inseridos, e sem os quais nós mesmos não viveríamos.

Este novo conceito está em perfeita sintonia com as “Metas do Milênio”. O documento, publicado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2000, ao analisar os maiores problemas mundiais, propôs oito jeitos de mudar o mundo:

  1. Erradicar a extrema pobreza e a fome
  2. Atingir o ensino básico universal
  3. Promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres
  4. Reduzir a mortalidade infantil
  5. Melhorar a saúde materna
  6. Combater o HIV/Aids, a malária e outras doenças
  7. Garantir a sustentabilidade ambiental
  8. Estabelecer uma Parceria Mundial para o Desenvolvimento

Essa nova postura vai exigir do ser humano uma mudança significativa no jeito de ver, pensar e viver em nosso planeta. A “Carta da Terra” é mais uma tentativa, destacada por Leonardo Boff, no livro Civilização Planetária[2], para fixar objetivamente os princípios a serem seguidos pela humanidade na busca dessa nova convivência:

I RESPEITAR E CUIDAR DA COMUNIDADE DA VIDA

1.      Respeitar a terra e a vida em toda sua diversidade.
2.      Cuidar da comunidade da vida com compreensão, compaixão e amor;
3.      Construir sociedades democráticas que sejam justas, participativas, sustentáveis e pacíficas;
4.      Garantir as dádivas e a beleza da terra para as atuais e as futuras gerações.

II INTEGRIDADE ECOLÓGICA

5.      Proteger e restaurar a integridade dos sistemas ecológicos da Terra, com especial preocupação pela diversidade biológica e pelos processos naturais que sustentam a vida;
6.      Prevenir o dano ao ambiente como o melhor método de proteção ambiental e, quando o conhecimento for limitado, assumir uma postura de precaução;
7.      Adotar padrões de produção, consumo e reprodução que protejam as capacidades regenerativas da Terra, os direitos humanos e o bem-estar comunitário;
8.      Avançar o estudo da sustentabilidade ecológica e promotor a troca aberta e a ampla aplicação do conhecimento adquirido.

III JUSTIÇA SOCIAL E ECONOMIA

9.      Erradicar a pobreza como um imperativo ético, social e ambiental;
10.  Garantir que as atividades e instituições econômicas em todos os níveis promovam o desenvolvimento humano de forma equitativa e sustentável;
11.  Afirmar a igualdade e a equidade de gênero como pré-requisitos para o desenvolvimento sustentável e assegurar  o acesso universal “a educação, “a assistência de saúde e as oportunidades econômicas;
12.  Defender, sem discriminação, os direitos de todas as pessoas a um ambiente naural e social capaz de assegurar a dignidade humana, a saúde corporal e o bem-estar espiritual, concedendo especial atenção aos direitos dos povos indígenas e minorias.

IV DEMOCRACIA, NÃO VIOLÊNCIA E PAZ

13.  Fortalecer as instituições democráticas em todos os níveis e proporcionar-lhes transparência e prestação de contas no exercício do governo, participação inclusiva na tomada de decisões e no acesso a justiça;
14.  Integrar, na educação formal e na aprendizagem ao longo da vida, os conhecimentos, valores e habilidades necessárias para um modo de vida sustentável;
15.  Tratar todos os seres vivos com respeito e consideração;
16.  Promover uma cultura de tolerância, não violência e paz.

O que se estabelece nestes princípios pode parecer meio romântico, ou até mesmo utópico. Mas não sairemos dos caminhos atuais se não nos ousarmos refletir um mundo a partir de uma nova perspectiva, menos racional, porém não fantasiosa; menos rígida, porém não tão dispersa; na verdade, precisa ser balizada por atitudes livres das amarras impostas pela sociedade.

Tenho a impressão de que o filme americano “Avatar”[3], apesar de ter utilizado dinheiro do acúmulo e ser produzido pela maior nação que detém o poder capitalista, tem esse viés. Localizado numa perspectiva temporária que vai além de um século do nosso tempo, sugere a relação dos “Na’vi” com a natureza. Estabelece essa sinergia entre todas as vidas. Simbolicamente, o centro da vida para os nativos é uma árvore.

Talvez fosse sensato a todos os humanos o direito de sair do planeta terra e contemplá-lo de longe e de lá perceber que nós “não vivemos sobre a terra. Nós somos terra”[4].

A música “What a Wonderful World”, entoada por Louis Armstrong em 1967, também revela traços de uma humanidade amorosa, esperançosa e otimista com relação ao futuro. Sua tradução é poética:

Que Mundo Maravilhoso
Eu vejo as árvores verdes, rosas vermelhas também
Eu as vejo florescer para mim e você
E eu penso comigo… que mundo maravilhoso
Eu vejo os céus tão azuis e as nuvens tão brancas
O brilho abençoado do dia, e a escuridão sagrada da noite
E eu penso comigo… que mundo maravilhoso
As cores do arco-íris, tão bonitas no céu
Estão também nos rostos das pessoas que se vão
Vejo amigos apertando as mãos, dizendo: “como você vai?”
Eles realmente dizem: “eu te amo!”
Eu ouço bebês chorando, eu os vejo crescer
Eles aprenderão muito mais que eu jamais saberei
E eu penso comigo… que mundo maravilhoso
Sim, eu penso comigo… que mundo maravilhoso

O mundo, sobretudo as pessoas que nele ainda viverão por longos anos, clama por uma nova forma de convivência e de relações humanas que não se reduza apenas a acumular e desfrutar, sem limites, dos seus benefícios. Parafraseando o Papa Francisco, é possível afirmar que as nações assistem perplexas ao cuidado com as coisas e o recorrente descaso com os seres vivos.

Segundo matéria publicada pela Folha de São Paulo[5]

As pessoas mais pobres dos países ricos tiveram mais risco de passar por um episódio de depressão, tendência que não foi observada nas nações mais pobres

Isto não significa, por dedução simples, que as pessoas pobres vivem melhor. Para os “engraçados” de plantão, não se busca aqui dizer que é melhor ser pobre para ficar livre da depressão.

Significa dizer que enquanto mais detentor do capital, mais fragilizado ficará o ser humano às condições de insegurança impostas pelo regime do acúmulo. E que, portanto, imaginar sua perda tem gerado problemas sérios na sociedade.

Estudo revela que França, Estados Unidos, Holanda e Nova Zelândia lideram, em percentual, os primeiros episódios de depressão em pessoas com média de idade até 28 anos.

A mesma matéria compara oito países considerados em desenvolvimento: Brasil, Ucrânia, Colômbia, Líbano, África do Sul, Índia, México e China. Dentre estes, o Brasil lidera com 18,4% de casos semelhantes entre pessoas com idade média de 24 anos. O documento, no entanto, faz questão de destacar que no Brasil os dados só foram coletados na Grande São Paulo. O que se presume, é a redução destes índices, caso sejam incluídas as estimativas rurais ou de outras regiões do país.

Ainda que sejam feitas as devidas ponderações, não devem suscitar alívio imaginar que centenas de milhares jovens estão enfrentando transtornos mentais que podem se tornar irreparáveis, se mantidos os rumos definidos pelo “mundo moderno”.

Esse processo de reformulação das ideias e das práticas exigirá (e muito) de cada um de nós. De todos, indistintamente: dos mais idosos, exigirá prudência e paciência para discernir que a responsabilidade deve ser partilhada por todos; dos jovens, para reconhecerem que depositar horas em frente às máquinas estáticas ou mesmo em baladas gratuitas não os tornará menos alienados do que o pedaço do mundo que tentam lhe impor.

Como dissemos em 1993, reafirmamos:

“Construir uma nova sociedade significa colocar em campo o debate e o confronto das ideias; expor nossos pensamentos como forma alternativa de reflexão; abandonar as estradas da omissão infrutífera; mostrar que, sendo parte do coletivo, temos o direito e o poder de interferir nos rumos da história”. (página 36)


NOTAS

[1] A Carta da Terra é uma declaração de princípios éticos fundamentais para a construção, no século 21, de uma sociedade global justa, sustentável e pacífica, publicada no ano 2000.

[2] Ver página 115

[3] Avatar é um filme americano de ficção científica de 2009, escrito e dirigido por James Cameron, e estrelado por Sam WorthingtonZoë Saldaña,Michelle RodriguezSigourney Weaver e Stephen Lang. O filme, que foi produzido pela Lightstorm Entertainment e distribuído pela 20th Century Fox, tem seu enredo localizado no ano 2154 e é baseado em um conflito em Pandora, uma das luas de Polifemo, um dos três planetas gasosos fictícios que orbitam o sistema Alpha Centauri. Em Pandora, os colonizadores humanos e os Na’vi, nativos humanoides, entram em guerra pelos recursos do planeta e a continuação da existência da espécie nativa. O título do filme refere-se aos corpos Na’vi-humanos híbridos, criados por um grupo de cientistas através de engenharia genética, para interagir com os nativos de Pandora.

[4] Em Civilização Planetária, PP. 51

[5] Ver “Países ricos têm maiores índices de depressão, diz pesquisa”, publicação em 10/08/2011, http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/953244-paises-ricos-tem-maiores-indices-de-depressao-diz-pesquisa.shtml

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